sábado, fevereiro 21, 2009

À NORA

"Dentro do meu tempo todo, fica-me pouco para escrever, mas muito para pensar em vocês todos e principalmente na minha filha Daniela...
É sempre uma especie de luz que me entra no pensamento, quando recebo as tuas mensagens.
Minha querida filha, todos nós temos cordas que nos amarram a qualquer coisa e, essa coisa fixa e se não se desloca connosco, forçosamente que andamos à roda como a carocha ou como dizem os arábes e ficou expressão corrente entre os portugueses: "andamos à NORA!". Andar à nora é estar amarrado ao varal da nora para que esta tire àgua do poço.
Minha querida Daniela, não sabes o quanto custa sermos nós próprios a nos amarrarmos sem sequer haver o proveito de tirar àgua da nora! Há amarras de oiro, luminosas com que nos envolvemos e que têm no outro extremo ideais que caminham ao nosso lado, ou pessoas que o nosso amor santifica na caminhada junta que fazem. Mas minha querida filha, amarrados a pontos fixos, como o medo, o preconceito, as vinganças, as suspeições, as invejas, sem falar de tantos vícios de que podemos estar possuídos, é uma tragédia que chega a tirar o sentido à nossa vida.
Quando o pai fala de não te querer ver andar à roda como uma carocha, não está a dizer que andas à roda como uma carocha, nem se quer, à nora! Está só a dizer que não quer que estejas presa a medos e angustias, que te martirizam e te pintam a vida de negros e cinzentos. Tu sabes o que eu quero dizer e não vale a pena insistir.
No entanto obrigado pelos teus cuidados, todos sabemos que gostas de nós e sentes que nós somos uma parte da tua vida, das tuas memórias e que trazes a mãe no pensamento e no teu pensamento os pensamentos dela.
Do pai, José Manuel, com beijos, amor e saudades"
Excerto de uma carta do meu pai, datada a 3 de Setembro de 2003

4 comentários:

Miguel Baganha disse...

Vai correr tudo bem, meu amor.
Amo-te maningue.


Migcontigosempre

Rocha de Sousa disse...

Magnífica elegia a um pai invulgar
que se foi reinventando pelo sonho
e pelo imaginário, desdramatizando
aqui uma metáfora perigosa com a imagem da «nora» e com palavras de
amor, um amor sustentado para além das suas próprias contradições.
Mas as fotografias, essas fotogra-
fias são um epitáfio feito pela me-
mória, pela degradação e pelo insó-
lito, lugar para nunca mais, o ma-
rulhar das águas como a sinfonia do
Universo.
Nota: «à nora» é uma expressão po-
pular que está suficientemente en-
quadrada pela carta, mas não faz sentido usada por cima da fotogra-
fia. Sem fugir aos referentes, pen-
so que devias usar apenas o título,
então enigmático só de início, A NORA.
Estou contigo no mesmo sentimento
Rocha de Sousa

Anónimo disse...

chorei a ler este texto.


*grd beijo dani

Unknown disse...

Daniela

Conheci o teu pai e a tua mãe há muitos anos, em Nacala. Ainda te lembras?
Naquele tempo, corriam tempos de mudança.
Depois de sair de Nampula e, mais tarde, de Moçambique, ficaram as lembranças, todas elas muito boas.
Ainda hoje penso como eles eram pacientes para aturar todas as nossas maluqueiras e fantasias "revolucionárias".
O curioso é que entre todos não se sentia a diferença de idades. Foram bons esses tempos e mentiria se não dissesse que tenho saudades, não só das tertúlias em tua casa como dos teus pais. Eram um casal único.

Bjs